A melodia foi mandada de longe com o intuito de se derramar nos ouvidos dela e dizer quais letras valeriam à pena soltar da caneta bic azul. Provocava-a, é claro, porque até então ela só estava contente.
Nesta mesma faísca de tempo um dedo familiar tocou, com sua unha vermelha, a boca dele. A música que sonava pedia um silêncio que ele não podia dar sem dor, pois passava por ali só, transparente. Olhou para o alto. Vinha de uma das janelas de cima. Caminhou uns dez passos bem contados, tempo exato de não-refletir e sentir na boca um desejo suave chegando. Peneirou tudo chacoalhando a cabeça e restou um azul. Parou sem saber se era essa a cor desenhada pela voz de homem que escorria da janela, pela parede de fora. Sentou-se no meio-fio sujo jogando o relógio de pulso no bueiro. Com as mãos na cabeça e os cotovelos cutucando os joelhos lembrou-se do choro de Darío Grandinetti ao escutar Caetano cantando em 'Hable con ella'. Outra vez ele sente o que o fez repetir inúmeras vezes essa mesma cena do filme. Acabando, recomeçando e reacabando numa circularidade infinita de tempo.. da mesma forma a melodia que saía dalí também recomeçava para mostrar que já havia terminado. Começava com um silêncio roto e enchia-se de lágrima até completar a imagem de um desespero trêmulo.
Com as notas surgiam também, nas pálpebras dos olhos dela, feito pantalla de cine, a imagem agônica de Pina Baush dançando seu 'Café Müller'. Pelo só contente, passava agora um fio bem fino de lágrima esticada dando um nó na garganta. Ela senta-se com uma taça de água tíbia ao lado. Acho que pensa nas cadeiras jogadas ao lado por Pina, dramaticamente recheadas. Apaga a luz e repete incansavelmente a canção, insinuando ao espelho e ao mundo que suas curvas pulsam, apesar dos números e dos gráficos retos.
Depois de um sem-tempo aí parado levantou-se. Queria sentir em suas mãos a agonia do rosto que não via desde que se foram, cada qual com suas roupas e seus tons. De vez em quando o esticador de lágrimas tricota o sorriso vestido pelas bocas, que se reconhecem pela combinação excêntrica de movimento de músculos e ritmo trêmulo antes do bendito beijo. Subiu, degrau por degrau, até a porta. Viu escorrendo pelo vão os agudos e os graves que nao se mesclavam, mas molhavam o tapete. Entrou cuidando para não pisar nas semibreves, que nao eram tão breves nem delicadas. Sim, era mesmo ela, que derruba a bic no chão e com um riso quase no canto da boca solta-se num abraço apertado pelas costas, fechando os olhos e sentindo as pausas finais dessa aria de ópera que continua, por um tempo não captado pelo tic-tac do bueiro, acabando e recomeçando da mesma forma: azul,trêmula e cuidadosamente rota.
*por aqui a canção chegou com Juan Diego Flores
(Não sei se te convence o mote, Spode.)