22 mars, 2008

pelicula tinta

A luz entra sorrateira pela fresta da janela e rouba o pó que resta sobre o negrume do móvel. Observa, silente, aquelas minúsculas partículas de poeira sendo levadas pelo fio de luz, ou deixadas, talvez. Interessante como essas coisas nos iludem! Por um instante, que não sabe se são frações de segundos ou minutos, talvez horas, fica ali meio caída. O corpo, dolorido pela noite mal dormida, perde a força diante da leveza desses mini pedaços de algo que se puiu e agora não deixa vestígios do que já foi. Assim esquece, assim foge da dimensão temporal a qual pertence, assim deixa a sombra banhar-se pela luz, ainda que na minúcia de um sopro. A boca, entreaberta, é de uma dor sedutora. Será que sentiria a leveza de tal cena se não se encontrasse assim?.. fundo do poço? fim do caminho? Clichês costumam vestir bem as singularidades da vida. Ainda que milhões de indivíduos tenham passado por crises iguais, há uma particularidade em cada uma delas. Cada qual com a afetação de seu corpo. Cada qual com sua desmedida de desejo. Cada qual com sua taça de lágrimas. Há também quem nem chore. Simplesmente um virar de costas e tudo se apaga ou desmancha.
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Meio jogada ali, simples e aberta como nunca esteve antes. Estilhaçada, para bem da verdade. Em uma suavidade triste, o dorso da mão toca levemente um pedaço da boca e do rosto. Texturas que se diferem em sua contiguidade. Com um olhar sobre ombro direito foca um fragmento vermelho do vestido que se rasgou.. fecha os olhos. Respira. Sente ainda o cheiro em sua pele, que não é mais seu, talvez nunca tenha sido. Cerra os olhos.. lívida, suave. Ao reabrí-los sente novamente o vai-e-vem daquelas partículas seguindo o feixe de luz, que começa agora a dançar sobre a dor rubra do tecido e de sua pele. Em um belo contraste, a cor do ladrilho branco sorri ao canto negro da mesa. Um enquadramento torturante.
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Um encontro.. o encontro! A lascívia que pode surgir em uma faísca de olhar. Um só toque de luz que se torna contíguo aos dois indivíduos e... o viço da pele e do desejo. Seria então a medida para a vida, o encontro? O encontro com a pétala.. com a melodia.. com a textura branca de uma árvore.. com o olhar de uma coruja..
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Um suspiro forte. O demorar do piscar de olhos leve a faz lembrar de todo o começo. Houve uma razão para o começo? Bobagens, todos começam alguma coisa todos os dia. Dias felizes.. outros nem tanto. Uma história a ser contada para si ou para o travesseiro. Confidente de lágrimas.. confidente de infidelidades. O começo.. a delícia do começo.. o ardor de um tinto chileno. Um lençol revolvido.. braços que se entrelaçam.. carícias. Imóvel permanece sob a sombra negra da mesa desnuda.. muda no mesmo gesto, silente na mesma dor. Com medo e com calma... A luxúria da noite, a mediocridade do dia. Sempre achou, mais sedutoras, as noites. Por ela pode-se fluir só, em busca de nada, e conquistar tudo. Sabe-se que se pode vestir de lágrimas e uma lasca de charme permanecerá viva. Enquanto o dia, a mediocridade ronda. O trabalho, a criação para a sobrevivência.. quão triste pode ser o massacre da vida pela sobrevivência. O corpo se fecha, as afetações fogem e as cores passam incólumes. O desejo se esconde no bolso, e isso dói. Sempre achei que os espaços vazios entre os afazeres rígidos e pontuais da vida moderna pudessem ser pigmentados com a malemolência das melodias, dos tons e das letras que se escondem por não terem sido ditas, pois quando ditas o sentido já escapulira dali. Nunca imaginei tão difícil. Sorrateiramente somos domados. O charme se esvai.. noites belas, dias massantes.
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O imaginário permeia esse ser, essa moça caída sem forças. O sol já banha uma parte de sua perna nua entre o rasgo do vestido.. e ela, a mirar o feixe se alargando, pouco a pouco, sentindo a pontada, sentindo o aperto, sentindo o desejo. A fatalidade de uma noite. A banalidade da última noite. A conversa foi sim a mesma.. o beijo, não. O desejo, já nem sabe mais.. as lembranças queimam e se queimam sob o sol que invade o ambiente, agora com mais furor. Devaneios ditos rente ao pescoço entrelaçando bocas, peles, braços, pés... embaraço de nervos e músculos. Palavras por serem ditas.. gestos escassos. Delicadeza. O olhar pequeno derrama uma lágrima que dança com um giro suave do pescoço ao se lembrar de tal cena. Uma agulha de dor aponta isso. Sente de novo, com o rosto, a pele do ombro esquerdo como se fosse aquela pele, ou como se ela a envolvesse novamente. Mas sabe que não. Com o cabelo bagunçado, caído no rosto e molhado em lágrimas, vê uma mancha vermelha no chão. Parecia-se com um sangue, seu sangue, o outro sangue.. aquele que já não pode mais pulsar perto de seu peito. Não, não pode.. o pulsar incessante e quente daquele sangue que a fazia trêmula já não compartilha sua dimensão de espaço, sua dimensão de vida. Esvaiu-se. Estava sim um pouco perturbada por conta de um possível fim.. as melodias que a envolviam já não teriam o mesmo sentido sem aquela textura envolvendo-a. Os olhares quando se desencontravam.. quão tristes! Desmanchavam-se aos poucos. Ela se deixou levar. Ela o deixou fluir. Entornou a taça em meio a uma dança noturna estonteante.. nem percebeu que o vinho derramado no lençol fosse capaz de selar o fim de uma história que apenas começava. Em um tempo errado talvez, mas começava. Aliás, não percebeu que isso a pusesse de novo em contato com um sentido que se perde hora ou outra. A percepção das coisas ínfimas. A afetação às coisas singelas, simples. Ainda jogada, desmoronada de si mesma percebe a explosão das cores frias que gritam a ela por vida. Imploram por um pouco de dor. Dizem a ela que já se banharam na fresta de luz e que querem sentir, agora, suas tonalidades vibrantes à tona. A luz que entrara timidamente roubando o frio da madrugada de julho. Essa mesma luz que agora anuncia o que o vermelho entornado nesse chão diz, o que a cor do tecido dilacerado que a envolve diz. Que ele se foi sob palavras que doem. De nada adiantou vestir-se de cores e melodias. Ele não veio essa noite. Não mais virá.
Sua pele é banhada por fogo. Segura o pé da mesa devagar. Recobra um pouco os sentidos. Escorrega a mão direita pelos olhos e cabelos. Busca os saltos caídos ao lado dos estilhaços de vidro. Levanta-se sentindo que o calor daqueles raios que assolaram o ambiente a envolve por completo enxugando seu corpo úmido de lágrimas. Com a barra do vestido em rasgos na mão, pisa descalça no vinho derramado sentindo seu grito e a gélida textura lisa do ladrilho branco. Como se a câmera permanecesse parada no mesmo ângulo de toda aquela angústia de devaneios.. no ângulo das desimportâncias.. em uma fotografia em preto e branco, cujos únicos tons que ousam sair do roteiro ditado são a do vestido, do salto e do vinho derramado em primeiro plano. Assim se esvai no sumidouro do quadro. Com uma bebida sedosa nos lábios e uma melodia silenciada ao redor. São os seus resquícios.. silentes estão suas mãos, mas não o corpo.